quarta-feira, junho 30

LITERA-RUA



Ferréz

Não entendo o que o senhor oficial representante do Estado está falando.

Desculpe, estou fazendo uma reciclagem de alemão, e por isso às vezes me engano no idioma, eu disse para você parar referente a uma averiguação e possível restrição de liberdade.

Ok, para o senhor ser informado estou indo para a rua João Antônio, voltando da sala de leitura Trindade, esquina com a Plínio Barreto.

Abra as pernas, por favor, o senhor porta alienadores de realidade?

Não, no momento estou somente meio letárgico por causa de Shakespeare.

Tire o boné, por favor, tem alguma pagina de Marx ou algo do gênero?

Não senhor, pode exercer o método de vistoria cerebral.

Ok, cidadão, método de vistoria cerebral não será necessário, vejo pelo seu olhar nunca abaixando as íris e não desviando do contato direto que está falando a verdade, já foi usuário?

Sim, não vou faltar com a verdade, já li muita L.M. e também consumi artigos impróprios nos antigos saraus, mas hoje estou limpo.

Nossa que pena, um menino tão novo, já passou por sarau, mas tudo bem, hoje é outro dia. Eu aconselho jovens como você a irem a peças de teatro, tem uma em cartaz que dá até para ver de perto atores que fazem novela no horário nobre.

É mesmo? Que legal!

Espero que você não se torne um desses que de usar tanto Leminski no banheiro, de injetar Lourenço com nanquim em fundo de praça, que de ficar chapado de Colín e Shimamoto, acaba se desvinculando da realidade.

Não, isso não senhor!

Bom, pode ir.

Olá amigo, você que está vendendo o suor hoje?

Eu mesmo estou trabalhando, mas daqui a duas horas estou livre, o período de 4 horas do sindicato dos traficantes organizados e descompromissados de facções cadastradas me orientou sobre meus direitos.

Está certo, me vê uma página de Gorki, e uma de Dostoievski.

Vai usar ou vai levar?

Vou usar aqui, você tem algum canto de leitura?

Tem sim, no terceiro barraco à esquerda, tem opção de café ou chá também, coloque as duas páginas na meia e cuidado, tem um policial colecionador novo na área.

Mas colecionador de quê?

Dizem que é fanático por Veríssimo, já pegou vários por aí e tomou tudo, ainda dá páginas de Paulo Coelho para humilhar o viciado.

Nossa! Sem dó mesmo, hein?

Nem me fale, eu que recolho esse lixo que eles deixam por aí, tenho dezenas de páginas de magos, vampiros, feitiços e tudo isso.

Pior seria se ele obrigasse a ler Sidney Sheldon ou Dan Brown.

Nem me fale, irmão, me vê uma dose de Montalbán?

Vou ter só na versão em português, a original em espanhol tá difícil de trazer, tem muito clube de leitura oficial na nossa bota.

Mas eu queria a verdadeira, a pura mesmo, sem tradução.

Então irmão, vai ter que ir a algum ponto oficial.

Mas eu não tenho carteirinha de leitor, sempre consumi assim no desbaratino, você sabe: depois que a gente passa pela literatura mexicana, acaba perdendo o direito de entrar nas oficiais.

Faz o seguinte, não conta pra ninguém, mas na leste tem um foco de resistência organizada, chama-se Baluartes Unificados Zelando Oprimidos, ou como o povo chama de BUZO, você chega na leste, perto do Itaim literário e pergunta nas vielas do saber.

Firmeza, tô mesmo a fim de recitar e consumir algo em conjunto. Você sabe onde tá pegando?

Bom, o elo da corrente agora são os poetas, eles tão se unindo agora num novo lugar, depois que a Polícia Federal começou a perseguir o alto tráfico de informação; vários deles foram presos por porte ilegal de conhecimento e agora eles estão numa entidade, diz que o sarau lá é pura brasa, chama-se Donde Miras, como os moleques que traficam Cortázar começaram a chamar; pra você entrar tem que trocar ideia com o velho líder, um cara muito criterioso e que decide tudo na organização, o nome dele é Binho.

Certo, então vou pra lá, mas antes me vê um aí do Marcelino Freire.

Toma, guarda rápido.

Quanto é?

Tô te devendo aquela dose de Glauco Mattoso, então fica elas por elas.

Firmeza, onde posso usar?

Faz assim, lê rapidinho no banheiro ali, se alguém encostar você finge que tá lendo essa revista Veja aqui.

Puta! Vou ter que pôr isso na mão?

Só pra fingir, irmão, só pra fingir.

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.

(Fonte: Caros Amigos, v. 14, n.159, p. 9, jun. 2010)

Por: Tábata Nunes Tavares

Nenhum comentário:

Postar um comentário